O atual ocupante dos palácios do Planalto e da Alvorada levou uma enxurrada de críticas e deboches durante o carnaval. A figura é um prato cheio para isso. Até aí, nada demais. Carnaval é uma catarse coletiva e, como em toda catarse, tem de tudo. Uns gorós a mais são mais que suficientes para soltar tudo que é bicho.
Em outros lugares, não tem nada disso ou nem tanto: a festa está mais para aniversário infantil, com desfile de máscaras e fantasias bem comportadas. Mas nem por todos os exageros se pode rotular o Carnaval brasileiro de putaria geral. Cenas pornográficas, com exibição das partes íntimas e sexo explícito, são raríssimas. Limitam-se a clubes marginais, mantidos por narcotraficantes e milícias formadas por ex-PMs e ex-policiais civis, com a conivência ou complacência de comandos ativos dessas forças. Lá, o funk rola com n e sem n, o ano inteiro.
Por que será que o capitão agora presidente de plantão nunca postou a putaria – aí, sim, o adjetivo calça como uma luva – que rola todo fim de semana nos bailes funks das periferias dominadas? A resposta está no fim do parágrafo anterior. Bailes funks são fontes de renda polpuda para as milícias, atração preferida do chefe da família e seus filhos políticos.
Mas, voltando um pouco o filme, o que não é normal, por aqui, é a autoridade revoltar-se com as insolências encarnadas no Carnevale, para usar a palavra latina que lhe dá origem em português. Só porque o público jogou laranjas e pedras de gelo nos bonecos do presidente e da primeira-dama em Olinda? Só porque foliões vestiram-se de laranja Brasil a fora? Só porque a Mangueira desfilou com um samba-enredo arrojado e belamente executado, contando a história não oficial das últimas décadas, quando tivemos uma ditadura assassina que deixou saudades em muitos integrantes das casernas?
O laranjal do PSL (e outros) não é uma invenção carnavalesca, mas um fato sob investigação judicial para apuração das (i)responsabilidades. O samba-enredo da Mangueira não é uma criação fantástica do carnavalesco Leandro Vieira, mas denuncia fatos que a ultradireita brasileira quer extirpar dos livros de História e devolver às covas rasas em que foram enterrados pela lei de anistia de 1979, onde supunham que iam apodrecer e ressecar até o fim dos tempos.
O mais incrível de tudo é que a Mangueira é escola com forte sustentação na dinheirama do crime organizado, desde a contravenção centenária no Rio de Janeiro até as modernas milícias paramilitares. E como tem de tudo nos sambas do crioulo doido – expressão magistral e não-racista de Stanislau Ponte Preta –, a Mangueira homenageia Marielle, assassinada pelas milícias e, por óbvio, crime sem solução.
Um Carnaval subversivo é o que tivemos em 2019, desenterrando a podridão. É isso o que indignou o ex-bananeiro, ex-capitão, ex-deputado da bala e agora presidente de plantão que pratica espécie de auto-degolamento político no twiter – ainda não se sabe se por mote próprio ou do filho 02, aprendiz de feiticeiro das redes sociais bolsonaristas. Tem sempre uma hora em que o arrivista derruba o caldeirão, seja ele pai ou filho.
Para completar, e não me deixar mentir, cortaram a luz na quadra da Mangueira. Simbolicamente, preferem as trevas à luz da verdade nua.
Nelson Merlin
Editor e diretor de Redação em jornais de São Paulo, Rio de Janeiro e Paraná